Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

O cearense incrédulo

O chamado "boca a boca" é, sem dúvida nenhuma, um dos meios mais eficazes na divulgação de um produto. Aliás, não sei por que se chama assim — boca a boca pra mim é beijo ou respiração de salvamento. Devia ser boca a ouvido no bom sentido, é claro. Bom, deixa pra lá, o fato é que, embora o "boca a boca" seja eficaz, penso que não pode ser deixado como o único meio de se divulgar um produto.

E o que aconteceu recentemente comigo mostra como é preciso investir fortemente na criação de uma imagem de marca, para que o reconhecimento público seja crescente.

Foi a primeira vez que abasteci o meu jipe cearense, logo após retirá-lo da concessionária. A propósito, tive que abastecer num posto da concorrência, porque, como todos sabem, as concessionárias nos vendem veículos por milhares de reais com o tanque contendo míseros centavos de gasolina, suficientes para chegar ao posto mais próximo e olhe lá. Mas isso é outra conversa (ou outro artigo).

Parei o jipe e fui atendido por dois simpáticos frentistas, muito prestativos, um deles novo no posto e o outro com aquele ar de "rei da goiabada preta". Começou o abastecimento e o diálogo que se segue:

O Rei da Goiabada (vamos chamá-lo "Rei"):

— "Severino, sabia que este jipe é feito no Ceará?"

— "Pare de mangar comigo, o Ceará só faz bode, cabrito e cearense!"

— "Juro pra você! É feito no Ceará e ainda correu naquela corrida maluca na África, doutor, por favor, como é que chama?"

Eu, me divertindo muito: — "Paris-Dakar".

E não havia jeito de o Severino acreditar. Novato, deve ter levado tantos trotes do "Rei" que achava que este era mais um.

O "Rei" resolve recorrer ao meu testemunho:

— "Não é verdade, doutor? fala pra ele, ele não acredita".

Dei meu testemunho. Talvez porque o "Rei" tivesse um sorriso maroto (e de triunfo) no rosto, Severino não acreditou em mim, ou talvez porque a essa altura também eu estava rindo bastante.

O "Rei" ficou muito revoltado:

— "Tá certo que você não acredite em mim, mas não acreditar no doutor, que tá se vendo que é um homem sério, é demais. Tu é mesmo uma besta!"

Severino respondeu dizendo que besta era... bom, vocês sabem, aquele expletivo muito usado que elogia a mãe alheia e cujas iniciais são as mesmas de Português Que Protesta ou Pernas que Prometem.

Percebi que o animus belligerandi estava atingindo níveis perigosos, nível de peixeira ou, no mínimo, balde na cabeça. Não querendo que o meu objeto de transporte se tornasse pivô de um crime, resolvi intervir de forma mais consistente e com mais credibilidade. Peguei o manual e mostrei para Severino, leia aqui o nome do fabricante e onde fica.

O Brasil é, ainda, um país de muitos analfabetos ou semi-analfabetos. E um problema de ordem prática surgiu. Severino lia, digamos, muito pouco. Por sorte, um carro parou para abastecer, uma jovem senhora ao volante. Vi nela a salvadora, a testemunha impecável:

— "Severino, você concorda que aquela senhora não sabe do assunto e não vai mentir para você?"

Severino, ressabiado, aceitou. Levei o manual para a jovem senhora que, mesmo sem entender nada do que estava acontecendo, gentilmente nos leu o nome do fabricante e seu endereço.

Severino finalmente concordou, enquanto balançava a cabeça e dizia, puxa vida, puxa vida. Tinha um ar misto de surpresa e de alegria, que eu não estava entendendo, mas que entendi quando o "Rei", agarrando carinhosamente Severino pelo pescoço, informou:

— "O pior, doutor, é que este teimoso aqui é... cearense!"

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 11/06/2001

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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