Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

O cheque de Kuala Lumpur

Volto ao assunto da inflexibilidade das regras e sistemas no que se refere ao atendimento ao público e às relações com os clientes em geral. A retomada do tema vale também como constatação quanto ao nível dos atendentes e à falta de preocupação e percepção das empresas de que funcionários mal treinados, desatentos e às vezes grosseiros fazem a diferença entre uma venda mal sucedida e uma venda exitosa.

Outro dia precisei de uns triviais álbuns de fotografia. Estava em São Paulo e resolvi conhecer um novo shopping que encontrei bonito e simpático por sinal, mesmo para mim que odeio essa invenção do consumismo moderno que se chama shopping center. Inveterado fuçador de livrarias passei primeiro na grande que tem por lá e acabei, para variar, levando alguns "livrinhos". Que, é claro, aguçarão meu sentimento de culpa de não ter tempo para ler os 25 livros que tento ler ao mesmo tempo.

Após pagar os livros, constatei que eu estava com apenas dois cheques no talão e, portanto, com pouca "munição", uma vez que não porto habitualmente cartões de crédito.

Entrei numa loja chamada F......., onde fui atendido por bocejantes funcionárias, comandadas por um desinteressado "gerente". Não obstante, escolhi os álbuns e fui dirigido ao glorioso gestor para efetuar o pagamento. Diálogo que se seguiu:

— "O senhor tem cartão do banco?"

— "Não senhor, mas se isso é um problema eu nem começo a preencher o cheque porque, como o senhor vê, eu só tenho duas folhas..."

— "Nenhum problema, pode preencher".

Preenchi. Assinei. Com um ar de quase repugnância, o ilustre cidadão me devolveu o cheque:

— "Esse não pode! É de outra praça!"

Olhei preocupado. Teria caído por acaso nas minhas mãos um cheque de um banco em Kuala Lumpur? Ou em Madagascar? Não, era o meu velho conhecido cheque de um banco no Rio de Janeiro, tradicional balneário onde nasci e habito e que desperta nos paulistas uma adorável e conflituosa ambivalência de amor, inveja e sentimento de superioridade.

Tentei apelar ao bom senso:

— "Meu amigo, por que não me disse antes?"

O impávido gestor:

— "O senhor não perguntou!"

— "E por que não tem um aviso?"

O olhar de indiferença:

— "Não sei".

Tentei subir na hierarquia:

— "Posso falar com alguém que decide?"

Ele superior:

— "Eu decido".

Eu, me controlando a custo:

— "E o dono, quem é?"

Ele, de má vontade:

— "Seu Cido. Mas ele não fica aqui!"

Eu, entre os dentes:

— "Mas eu posso ligar para ele, não posso?"

Ele, olímpico:

— "O telefone é de uso exclusivo da casa".

— "Eu ligo pelo celular, me dá o número do telefone".

— "Não sei se tenho, tinha".

Liguei, obviamente seu Cido não me atendeu.

Saí com o cheque na mão e vejo ao lado uma agradável loja da rede de supermercados onde tive o prazer de trabalhar até faz pouco; o gerente me reconheceu (obrigado, Paulo Roberto), trocou meu pobre cheque. Voltei à F....... e seu esclarecido "gerente":

— "Troquei o cheque!"

— "A gente sabia que o senhor dava um jeito! Já vamos embrulhar!"

— "Não precisa, eu só vim dizer que vou comprar na loja ali em frente"...

Meu caro senhor Cido, a F....... perdeu uma venda por motivo tolo. E venda, como pênalti, não é coisa que se perca. Ainda mais com a concorrência tão pertinho... A questão, senhor Cido, não é aceitar ou não cheque de outra praça. A questão é a atitude. É a maneira de tratar seus clientes. Que, aliás, podem rapidamente se transformar em ex-futuros-clientes.

E o cheque nem era de Kuala Lumpur...

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 12/09/2000

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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