Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

Sapateiros, cuidem dos sapatos!

Não sei se li em um conto, fábula, se é uma lenda ou se aconteceu mesmo. Mas de qualquer forma é uma boa estória.

Conta-se que, certo dia, famoso pintor recebia convidados em seu estúdio para mostrar-lhes sua obra mais recente, o retrato do Rei. Era um retrato formal e muito elaborado, Sua Majestade posando em suas mais pomposas roupas de gala.

Entre os convidados estava um outro famoso conviva local, o sapateiro da corte. Dez entre dez socialites da época faziam seus caríssimos sapatos com o citado senhor. Tal sapateiro, após examinar cuidadosamente o quadro, indicou ao pintor que havia uma pequena e quase imperceptível falha nas fivelas dos sapatos do Rei, que ele mesmo, o sapateiro, havia desenhado e fabricado. Prontamente, e admirado com a minúcia do artesão, o pintor corrigiu o pequeno detalhe em sua obra.

Animado com o sucesso do seu poder de observação, o sapateiro ousou comentar sobre a provável incorreção de uma certa nuance de cor na gravata do Rei. Ao que o pintor, irritado, lhe disse: "Que não vá o sapateiro além dos sapatos!"

Bom, fato é que me lembrei muito dessa história ao reler trabalho produzido por um desses bancos americanos sobre a Copa do Mundo. Nele, e com a mesma segurança com que assinam seus relatórios econômico-financeiros, os analistas apontam como semifinalistas da Copa: Argentina, França, Itália e Espanha. Nenhum chegou lá.

E outros relatórios semelhantes revelam resultados parecidos, incluindo, entre os semifinalistas, Portugal e Inglaterra, que, como sabemos, também amargaram a desclassificação.

Isso tudo seria cômico e divertido se não fosse sério. Porque em outros campos a opinião injustificada desses mesmos analistas é levada rigorosamente ao pé da letra por um ente muito esperto chamado mercado. De repente, e com as conseqüências que todos conhecemos, atribui-se a um país como o Brasil uma nota má, como os professores fazem a um garoto de escola de mau comportamento.

Não é do escopo desta página discutir as razões econômico-políticas para o que está acontecendo hoje no mundo financeiro. É culpa de muita gente, desde os que falam de mais aos que fazem de menos. Mas quando vemos o nível de informação prevalecente nas grandes potencias sobre nós outros aqui de baixo fica muito claro porque uma situação lose-lose é constante. Basta lembrar que o mercado até há pouco premiava ações de empresas argentinas com múltiplos muito melhores do que os de empresas brasileiras. E hoje a tal avaliação de risco nivela países absolutamente dispares, de potenciais, tamanhos e realidades completamente distintos.

Vivemos numa época de um certo obscurantismo geral, onde alguns pretensos formadores de opinião e suas panelinhas ditam pensares a um mundo crescentemente mais pobre de idéias. O que cria o paradoxo espantoso de vermos um enorme agrupamento humano que, ao mesmo tempo em que é submetido a massivo nível de informação, se torna cada vez mais ignorante. Ficando, em função disso, sujeito aos gurus e messias que lhe trazem verdades prontas e absurdas, sob o satisfeito e aprovador olhar dos especuladores. Estes, aves de rapina que, desde os primórdios da história, florescem muito melhor quando o cenário é pintado como caótico, mesmo que esteja longe, muito longe, disso.

E é assim na mídia, nas artes, na política e no mercado financeiro. Medíocres são vendidos e comprados como gênios, desinibidos ignorantes saudados como luminosas sapiências. A poderosa força do marketing é usada para fins perversos e inconfessáveis. Lixo é chamado de instalação, ruídos viram música, palavras desconexas viram teatro, imagens mal feitas viram cinema, o grotesco vira audiência. E no mercado financeiro a ignorância e a má fé viram a desgraça de países inteiros e comprometem o trabalho sério de milhões, em favor da implacável lógica de um sistema improdutivo e perverso.

É, Minha Gente, apesar dos "decretos" em contrário, o Brasil é campeão. Ensine-se pois ao mundo que focinho de porco não é tomada, que Buenos Aires não é a capital do Brasil e que aqui se fala português e se dança o samba.

E, meninos e meninas, que não devem ir os sapateiros além dos sapatos...

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 08/07/2002

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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