Seria ótimo se o título se referisse serenamente aos elegantes barcos de Veneza e às requintadas pinturas de Canaletto mas, lamento, o assunto é outro.
É possível imaginar um produto que não consiga ser vendido nas gôndolas dos principais supermercados do Brasil e mesmo assim sobreviva? Ou que não consiga destaque nessas gôndolas e seja um sucesso de venda? Tal produto não teria uma trajetória de vendas brilhante ou duradoura no mercado de bens de consumo. Em tempo, gôndolas são as prateleiras de um supermercado.
Aliás, é antiga — e cada vez mais intensa — a disputa entre um varejo crescentemente consolidado, aqui e no mundo, e os oligopólios de certos setores de bens de consumo, cada um brigando por uma apropriação maior de fatias daquilo que o consumidor esta disposto a pagar por um determinado produto.
Nessa guerra que jamais terá fim, os produtos contam predominantemente com a força de suas marcas, que leva o consumidor a exigir a presença de determinados itens nas gôndolas. Por sua vez, os supermercados e hipermercados tem como armas sua capilaridade (leia-se logística); sua capacidade de exposição do produto ao público, da qual o fabricante não pode na esmagadora maioria das vezes prescindir; além de seu concentrado poder de compra.
Um momento, desculpem, o assunto aqui não é supermercados, voltemos ao tema central do produto sem exposição.
Existe um produto chamado cinema brasileiro. Ou pelo menos deveria existir como tal. Cinema que luta com dificuldades de produção e, neste particular, de um jeito ou de outro vai se arranjando. Mas cuja capacidade de exibição é sua maior fragilidade.
O problema não atinge tanto grandes sucessos como Carandiru, Cidade de Deus, etc. Mas é bastante grave para os filmes de alcance médio, que não tem a menor chance de exibição significativa nas salas brasileiras ou nos canais de televisão a cabo, exceção honrosa feita ao Canal Brasil. Tais filmes, mesmo que estejam agradando ao público, correm o risco de ser retirados de cartaz pela exigência contratual de exibição de um besteirol americano qualquer ou mesmo pela simples pressão ocasional de distribuidores. É mais ou menos como ocorre com os donos de botequim, que tem que aceitar a compra de determinado refrigerante se quiserem comprar a cerveja do mesmo fabricante.
Lembremos que muitas das produções norte-americanas sequer chegam a ser exibidas em seu próprio país de origem! O filme fica pronto e os donos do filme, em geral as grandes distribuidoras, decidem, após uma avaliação de olhos experimentados, que o filme não vale o esforço de marketing para ser exibido nos EUA. Em função disso, lançam-no marginalmente de forma discreta para cumprir contrato (se houver tal exigência), posteriormente direcionando-o à TV a cabo, muitas vezes somente em mercados marginais. Disso decorre a espantosa quantidade de lixo que atinge nossas telinhas.
O problema é extremamente complexo. Aliás, por favor, não se pense que sou contra o cinema norte-americano, pelo contrário, sou daqueles que acham que os EUA fazem e ainda farão por muito tempo o cinema de melhor relação quantidade/qualidade do mundo. Mas não podemos deixar que o cinema brasileiro desapareça ou encolha por falta de gôndolas, isto é, de telas para exibição. Para perceber a seriedade desta ameaça, basta observar o que aconteceu, por exemplo, com o maravilhoso cinema italiano.
E não é simplesmente apoiando a construção de novas salas que vamos conseguir isso, pois sem outras medidas integradas estaríamos apenas ampliando o espaço ocupado pela exibição de filmes estrangeiros. Certamente precisamos incrementar a oferta de salas em locais e cidades onde elas não existem. Isso é importante inclusive para a criação de um autentico público de cinema. Mas, para o crescimento sustentado da nossa indústria cinematográfica, é preciso também estabelecer mecanismos de incentivo para que os exibidores se sintam melhor recompensados sempre que exibirem o produto nacional.
Quem sabe, por exemplo, através de bônus fiscais extras vinculados à bilheteria que cada exibidor alcançar pela exibição de filmes brasileiros? Uma vinculação deste tipo poderia proporcionar maior possibilidade de exposição ao mercado para os filmes que merecem ser vistos e que o público quer ver. Sim, porque longe de mim defender reservas de mercado para filmes que o público não queira ver e que talvez não devam ser vistos mesmo...
Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.
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