Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

Uma bermuda para lá de indecorosa

Como todos sabem, o Rio de Janeiro é uma cidade situada próxima ao Pólo Norte e tem clima similar ao do inverno russo, com as temperaturas chegando aos cinqüenta graus negativos no inverno e, no máximo, quinze graus positivos no verão.

Calma, não estou completamente louco, ainda. Quero só chamar a atenção para alguns problemas de anti-marketing com os quais me deparei no final do século passado.

Uma vez que o Rio é, sim, uma cidade de um calor senegalesco aliado a uma umidade quase que absoluta, as pessoas tendem a se vestir, digamos, um tanto quanto à vontade. Sob o ponto de vista estético isso é bastante estimulante, como já diziam Tom e Vinícius.

No entanto, estabelecimentos como restaurantes e bares de melhor nível se vêem forçados a estabelecer um certo dressing code, para evitar a constrangedora presença de pessoas em trajes de banho, sandálias de dedo e outras vestimentas eventualmente mais informais.

Arrolada entre as baixas nessa batalha em defesa do bem vestir aparece a bermuda. Não por coincidência, esse universal modelito de calça cortada na altura do joelho parece ser originária das Bermudas, onde todos, policiais, funcionários da alfândega, garçons, motoristas, etc., usam, adivinhem, bermudas.

Foi também adotada prazerosamente na tradicionalíssima e centenária Marinha Real Inglesa, onde é usada inclusive por respeitáveis e cinqüentões almirantes, que nem por isso se sentem desrespeitando a boa ordem, a disciplina e a tradição dos seus HMS (Her Majesty Ships para os menos iniciados).

No entanto, na Cidade Maravilhosa, e por excesso de rigor, a bermuda é considerada por alguns como indecorosa, o que pode significar sem decoro ou fora do décor. Antigamente, inclusive, não se podia ir ao cinema de bermuda, por incrível que pareça. Eu aliás sempre consegui desafiar essa regra, dirigindo-me em inglês aos porteiros dos cinemas, o que revestia minhas bermudas de um ar de insuspeita dignidade.

Outro dia, véspera de reveillon, já naquele clima de festas, fui com um simpático grupo de pessoas jantar no novo Clube Gourmet do Rio. O ambiente é agradável, a decoração idem e o local muito melhor do que o anterior, que se sujeitava à proximidade nada estimulante de um cemitério.

Eis que nós, em dez pessoas sentadas, aguardávamos a presença de um casal. De repente, verificamos que um de nossos convivas estava sendo barrado à porta, porque estava de, imaginem o escândalo, bermudas. Normais, longas, elegantes, acompanhadas de excelentes sapatos e camisa de alta qualidade. Nada, portanto, que atentasse contra a dignidade do vetusto restaurante.

Tentamos apelar ao bom senso. Chamamos a gerente. Apresenta-se uma ilustre senhora de aspecto wagneriano. Insistimos, argumentamos, mas a valquíria foi irredutível (desculpem, Valquírias). E dizia, imponente, regras são regras, não podemos abrir exceções.

Não houve jeito. E o jovem teve de ir de Ipanema ao Jardim Botânico e voltar, perdendo bons quarenta minutos e nos deixando a todos bastante irritados.

E me vem, então, a seguinte lição a ser extraída do episódio: o mais difícil nas organizações não é estabelecer regras, nem fazer com que tais regras sejam seguidas. O mais difícil é fazer com que as pessoas percebam as sutilezas na aplicação das regras e os momentos onde sua excepcionalidade se aplica.

Em resumo: o mais difícil é fazer as pessoas pensarem. E aí estão os desafios e as oportunidades, especialmente para empresas prestadoras de serviços.

Numa organização pequena, como a do restaurante em questão, a rigidez na aplicação de regras genéricas não é aceitável.

Eu, aliás, diria que o rigor aplicado em barrar as bermudas seria melhor aplicado no controle de qualidade dos risotos produzidos na casa. Porque o que eu comi, se fôssemos fazer metáforas, merecia mais um calção de banho do que um fraque engalanado...

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 16/01/2001

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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