Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

A era da pós-ética

Sem ética não há civilização. Sem ética, o mundo pertence aos aventureiros, aos piratas, ao mais forte, ao mais esperto. E só a eles: the winner takes all.

No extraordinário filme de Carol Reed chamado O Terceiro Homem, o não menos extraordinário Orson Welles faz o papel de um inescrupuloso vendedor de penicilina falsificada na Viena do pós-guerra. Ao ser interpelado por um velho amigo sobre a indecente atividade, que deixava crianças entrevadas ou à morte, Welles responde com uma frase que ficou na História do Cinema:

— "Os romanos mataram e guerrearam, queimaram cidades e estupraram mulheres. O que nos deixaram? O Império Romano. E os florentinos, que se apunhalavam e envenenavam na calada da noite? Nos legaram a Renascença. Agora, os suíços sempre foram um povo ordeiro, trabalhador e respeitador das leis. E o que eles nos deixaram? O relógio cuco..."

Não sei dizer se esse supra-sumo de cinismo constava do original de Graham Greene ou se a frase era exatamente essa, não me dei ao trabalho de checar. Mas ela é muito bem colocada no contexto do filme e desnuda toda a sordidez do personagem de Welles. E, o que é mais grave, reflete o pensamento de muita gente que anda por aí.

O conceito de honrar a palavra empenhada, por exemplo, é hoje muito mais encontradiço no jogo do bicho do que no mundo dos negócios, onde se mente com uma desfaçatez assombrosa, capaz de fazer corar qualquer um que tenha um mínimo de dignidade. No campo político, nem precisamos comentar. Os conceitos de aliado ou inimigo, de certo ou errado, de honesto ou desonesto, enfim, conceitos triviais numa sociedade ética, se torcem e ajustam com incrível facilidade, levando-me a pensar que a frase operística poderia ser adaptada por alguns como la verità è mobile qual piuma al vento.

Receio que a esta altura eu possa estar parecendo um tanto ou quanto ingênuo. É portanto necessário dizer que não desconheço que a História mostra aponta longa sucessão de nações forjadas à base de sangue, ferro e fogo — as minorias e os índios do Novo Mundo, por exemplo, que o digam. Sei também que alianças as mais impensadas são às vezes necessárias ou indispensáveis. Churchill, ao ser questionado sobre a aliança com Stalin, respondeu dizendo que se Hitler invadisse o inferno ele se aliaria ao Diabo. Mas ele nunca escondeu sua repulsa por ser forçado a tal aliança e continuou achando e dizendo de Stalin o que sempre achou e disse, voltando a combatê-lo quando o inimigo comum estava derrotado.

Mas não é isso que importa no fundo. Importa é que as sociedades, para que se consolidem, precisam se ancorar em conceitos éticos para assegurar sua sobrevivência em bases estáveis e permanentes. Conseguimos imaginar uma sociedade onde o banditismo e a desonestidade sejam a regra? Não estou me referindo, pelo menos por enquanto, a nenhuma sociedade ou país em especial, ainda não chegamos lá...

Mas é preocupante que esta idade pós-moderna esteja virando pós-ética. Onde os valores mínimos de decência, fidelidade, lealdade parecem ser coisa do passado. Onde as pessoas se esmeram em surpreender pelo descumprimento da palavra dada minutos atrás. Onde ter a chamada vergonha na cara parece envergonhar e ser um privilégio dos tolos. Onde o nível de corrupção e insensibilidade é tal que solapa as bases de um desenvolvimento sustentado, em prejuízo da imensa massa de carentes e desvalidos.

Estaremos vivendo apenas um fenômeno passageiro? Espero que sim. Pois será repugnante para pais decentes prepararem seus filhos para viver no mundo que surgiria de tanta canalhice. E seria irresponsável trazer filhos para um mundo assim. O que, em ultima instancia, última instância, faria com que a espécie humana se tornasse nada mais do que um bando de irresponsáveis caminhando velozmente para a barbárie...

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 28/06/2004

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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