Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

A vista do meu banheiro

A vista do meu banheiro. A vista das janelas em frente das quais todo dia faço barba e escovo os dentes. Do banheiro onde contemplo no espelho os efeitos dos anos, dos estresses, dos amores e desamores, dos sucessos e das traições. A vista do meu banheiro, que é, além do mais, um show-room do Brasil.

Dois grandes prédios, lado a lado, um mais baixo, outro mais alto. Do mais alto não há o quê falar. Cinco suítes por apartamento, centenas de metros quadrados, dezenas de intimidantes seguranças vestidos de negro. Construído há pouco, em tempo recorde, tem piscina e muitas cositas mais.

O outro prédio, o mais baixo, é o que interessa neste momento. Construção parada, suas colunas e vigas expostas me lembram uma construção muito famosa no Rio de Janeiro da minha infância, onde hoje se localiza a UERJ. Paralisada a construção durante décadas, seu arcabouço mereceu o adequado apelido de "Esqueleto", nome que também foi atribuído à favela vizinha.

O prédio que vejo do meu banheiro é assim. Seus ossos expostos são um depoimento contra a incúria, a ganância, a incompetência. Ali estão expostas também as dores e as esperanças de dezenas de famílias e provavelmente ali estão enterradas suas economias.

Bom, naquele esqueleto paulista se instalaram invasores. Duas ou três famílias, não sei ao certo. Pais, filhos, e os inefáveis cachorros. Todos juntos, numa convivência promíscua com lixo acumulado e ratos. A bem da verdade, o lixo foi meticulosamente acumulado em um dos cantos do piso térreo, onde, de vez em quando, as partes mais incômodas são queimadas, gerando uma repugnante fumaça escura que naturalmente deposita incômodas partículas nas arrumadas piscinas das redondezas. Um lembrete também incômodo, uma metáfora materializada do Brasil.

Porque ninguém faz nada, ninguém inclusive eu. Nem os vizinhos, nem os proprietários daquela espécie de massa falida, nem o governo. Nossa capacidade de organização para resolver problemas como esse é muito pequena. Quantos prédios assim existem no Brasil? Por que não uma espécie de Programa de Consorciamento de Prédios Paralisados, através do qual todos se juntassem para terminar os prédios um a um, através de sorteio? Por que não um regime especial na nossa morosa Justiça para que pudéssemos remover os inúmeros entraves legais que certamente existem para a solução do problema? Por que não um esforço da sociedade organizada para que esses ativos ociosos possam se transformar em lares decentes? Devo aliás dizer que o problema me toca muito pessoalmente. Passei uma infância pobre morando em condições precárias enquanto um incorporador inescrupuloso nos devia cinco apartamentos de um prédio paralisado. Apartamentos que foram ficar prontos décadas depois, meus pais já mortos, morreram pobres.

A moradia é um dos itens essenciais da cidadania. A solução de problemas como esse tem que passar pela agenda de qualquer governo minimamente empenhado em corresponder às expectativas da maioria dos brasileiros.

Por outro lado, devo confessar que sempre penso numa alternativa. Tenho vontade de comprar cimento e tijolos e ensinar aos atuais habitantes do esqueleto paulista a erguer paredes e construir uma moradia decente para eles. Não seria uma experiência interessante?

Devo dizer que me moveriam duas intenções: dar a eles condições melhores de morar e, envergonhado reconheço, a razão principal: esconder avestruzmente da janela do meu banheiro aquele lembrete incômodo e diário da vergonha coletiva que um dia teremos que encarar como Nação...

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 11/11/2002

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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