Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

Brasileiros que não se chamam Antônio

Na verdade esses brasileiros de que quero falar agora — melhor dizendo, sobre quem quero escrever agora —, esses brasileiros, eu não sei o nome deles. Quero, no entanto, usá-los como um exemplo e uma metáfora.

Escrevi há algum tempo um artigo que se chamou Um brasileiro chamado Antônio. O personagem desse artigo era, e ainda é, um menino de seus treze anos que guarda carros num dos bolsões de estacionamento da USP. Mas Antônio, como contei no artigo, não é um guardador qualquer. É absolutamente diferenciado. Muito popular entre os corredores e ciclistas, busca água quando percebe necessário, ajuda a retirar e colocar as bicicletas nos carros, enche pneus e faz outras tarefas semelhantes.

Além disso, nos brinda com uma conversa simpática e inteligente e com uma suavidade de maneiras difícil de encontrar. E assiste aos filmes no cinema da USP sempre que pode. Por isso, Antônio é em geral aquinhoado com recompensas monetárias bem superiores àquelas dadas a um flanelinha típico, essas em geral dadas de má vontade.

Bem, o jovem Antônio não é desta vez o personagem do artigo. Inclusive porque corremos o risco de transformá-lo numa estrela. Quero comentar sim sobre colegas do nosso herói (e de certa forma ele o é, como qualquer menino pobre no Brasil). Esses colegas, de idades variadas, atuam em outros bolsões de estacionamento próximo.Territórios aliás claramente demarcados, segundo estrutura de poder que desconheço e tenho até medo de conhecer.

Outro dia, o bolsão de Antônio estava lotado e fui forçado a parar num outro próximo. Claro que imediatamente se aproximaram os donos do local, com a clássica pergunta "Posso tomar conta?" Os dois ou três meninos observaram pacientemente enquanto eu tirava minha bicicleta do carro, coisa que, para um desastrado como eu, não é tarefa simples como par maioria dos meus colegas de duas rodas. É claro também que não moveram um dedo para ajudar.

Enfim, andei minhas duas horas e na volta lá estavam eles, desta vez não tão pacientes. Coloquei a bicicleta no carro e de cara nada simpática estendi-lhes o real de praxe. E, para minha surpresa, um deles perguntou:

— "Por que o senhor dá mais pro Antônio?"

Bom que ele perguntou, valeu-me tema para este artigo. Expliquei-lhes na linguagem mais clara possível que Antônio, como algumas empresas, presta um serviço diferenciado. E por causa disso ganha uma remuneração diferenciada. E que Antônio se mexe e ajuda, Antônio, enfim, trabalha.

Eles se afastaram entre surpresos e aborrecidos. Mas, infelizmente, nada convencidos. Labor omnia vincit improbus. Os latinistas de plantão que me corrijam, por favor, mas acho que é assim: o trabalho persistente tudo vence.

Lemas às vezes são coisas complicadas. Querem passar uma mensagem e em certas situações se tornam ironias amargas, como o sinistro Arbeit macht Frei ("o trabalho liberta") dos campos de extermínio nazistas... De qualquer forma, os ditos latinos servem ainda para muita coisa: sucintos e acumulados ao longo de uma história imperial nunca igualada, esses ditos podem levar à reflexão necessária para que a ação ocorra.

A cultura de que o esperto é um ser superior e que o trabalhador é um tolo me parece de certa forma impregnada no nosso tecido social. É evidente que os espertos podem se dar bem em qualquer lugar do mundo, os exemplos estão aí no dia-a-dia. Mas a grandeza de países que admiramos e invejamos por sua pujança econômica se fez dentro de uma ética de respeito e valorização do trabalho. Um garoto norte-americano filho de pai rico não tem vergonha de ganhar uns trocados num posto de gasolina ou numa lanchonete. Lavar os pratos é tarefa de todos numa família média americana.

E nós? Achamos normal que garotos façam uma mini-extorsão "guardando" nossos carros; achamos até engraçado que o Estado não funcione e ainda assim nos cobre impostos; achamos apenas curioso o fato de pessoas que têm estabilidade no seu emprego fazerem greve.

E não entendemos que o talento sem trabalho vale muito pouco. As coisas têm que ser feitas e não apenas sonhadas. E me lembro agora dos dez anos da morte de Ayrton Senna, que foi grande porque era talentoso, sim, mas que deve ser lembrado, também, como um monumento vivo à disciplina e ao trabalho!

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 19/04/2004

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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