Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

LNL-3132 Os inocentes pagam

Manhã de trânsito na praia de Copacabana, há algum tempo atrás. Ronaldo, então meu motorista, disciplinado e bem-comportado, como sempre, leva-me ao escritório. Eu, distraído, concentrado nos problemas que me esperavam e desligado do trânsito como sempre caótico.

De repente, uma sucessão de sustos: uma guinada do Ronaldo, uma forte buzinada no meu lado direito e o cidadão do carro ao lado proferindo todos os xingamentos em que a língua portuguesa é pródiga. Que diabos havia acontecido?

Um evento duplo. Um ITFC estava na pista da esquerda, que parou de repente. Como sabemos, os ITFCs não suportam ficar em pistas paradas, particularmente quando a pista do lado está andando. E aí, não importando a aquiescência dos outros carros, que estão andando tranqüilamente em suas posições originais, os ITFCs mudam automaticamente de pista e jogam suas máquinas de afirmação, isto é, seus carros, em cima do desafortunado motorista que estiver a seu lado.

E foi isso que aconteceu. O ITFC jogou seu carro em cima do nosso. Ronaldo, no instinto, jogou o carro para a direita, naturalmente em cima de um outro carro que ali vinha que, óbvio, jogou seu carro quase em cima da calçada, freou e, como sempre, xingou.

E não só isso, ameaçou, falou da arma que teria oculta, verbalizou em impropérios racistas toda sua indignação. E a coisa só não piorou porque Ronaldo é muito educado, tranqüilo, e, principalmente, controlado. Apesar de ser forte como um touro ou talvez por causa disso.

A propósito, ninguém perguntou ainda o que é um ITFC. A bem da verdade não dei a oportunidade de perguntas. Um ITFC é uma versão piorada de um IT. Os ITs são uns tipos antigos e tradicionais, existem desde que o automóvel foi inventado: são os Idiotas do Trânsito, donos da rua e do mundo e que transbordam no carro todas as suas frustrações do dia-a-dia. Alguns são seres bastante perigosos, principalmente porque não podem ser detectados pelo exame da classe social, modelo do carro ou sexo a que pertencem (aliás, é crescente o número das Idiotas do Trânsito).

Já o modelo ITFC é mais perigoso ainda. São os Idiotas do Trânsito Falando no Celular.

Dependendo do assunto que estejam discutindo ao telefone, são uma ameaça osamabinladeana. O distraído motorista devia estar falando sobre assuntos muito interessantes, pois não estava nem aí para o trânsito, tema certamente de menor importância.

Assim, chegamos ao assunto que me motivou a escrever este artigo, que certamente não foi um incidente de trânsito. Foi uma correlação do acima narrado com o que está acontecendo no mundo de hoje, o mundo dos Bush e dos Bin Laden.

Não importa o credo, a idade, a nacionalidade ou o que seja, milhares de pessoas morreram nas torres do World Trade Center porque um grupo de fanáticos assim o decidiu. E milhões sofreram no Afeganistão por causa disso. E outros milhões estão prestes a sofrer no Iraque. A insensatez de poucos é o sofrimento de muitos. E tem sido assim ao longo da história da humanidade.

O pobre do Ronaldo ouviu xingamentos e foi ameaçado porque um irresponsável ia provocando um acidente. E esse irresponsável seguiu em frente sem sequer ter a percepção do que estava causando. E assim segue o mundo, decisões de gabinete mergulhando milhões na miséria e no sofrimento.

Será isso inerente à nossa organização social? Será inevitável a aplicação do princípio bíblico de que os justos pagam pelos culpados? Estará a humanidade condenada em pleno século XXI a conviver com a estupidez e com a brutalidade, que se manifestam das mais diversas formas, seja por diferenças raciais, ideológicas ou religiosas? E o que é pior, com as formas de insensatez desabrochando em mentes supostamente mais esclarecidas?

A humanidade que se prepare para ter a resposta. E nesse vestibular macabro decidiremos a possibilidade de existir ou não um futuro para nós. Porque as regras do bom senso já foram quebradas. E entre 3.000 americanos em aviões ou torres e dois milhões numa cidade qualquer os fanáticos não farão nenhuma diferença. E para aqueles que forem retaliar, não terá importância um milhão de afegãos passando fome ou trinta milhões de árabes quaisquer incinerados por um ataque nuclear.

Não é preciso muitos loucos para deflagrar um nível de insanidade espantoso, o número existente já é bastante. E lembro-me muito de Kubrick e seu Dr. Strangelove. E, mais uma vez, os justos pagarão pelos pecadores.

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 31/03/2003

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

Termos de uso  •  Contato