Falando outro dia ao telefone com Gillo Pontecorvo, um sopro de lembrança boa perpassou minha alma e um pouco da crença perdida na espécie humana retornou.
Para os que não saibam, Gillo dirigiu alguns dos filmes de carga política mais marcantes do cinema italiano e mundial. Quem assistiu Queimada ou a Batalha de Argel sabe do que eu estou falando. Hoje, é um homem combativo na defesa da sobrevivência de um cinema não-americano, batalha difícil mas não inglória. Os EUA dominam 85% do mercado mundial de cinema, sufocam a possibilidade de exibição do produto médio dos demais países e impõem a Pax Americana não só pelas armas mas também — e muito — pelo entertainment.
Gillo, é portanto, um guerreiro. Um velho guerreiro de grande lucidez e combatividade.
Mas quero falar de um outro Gillo que conheci. E, para isso, preciso contar uma história.
Há muitos, muitos anos, eu, jovem que já o fui, postei-me às portas do Colégio Sion no Rio para esperar pela saída de uma linda e delicada enfant de Sion, a respeito da qual eu tinha as melhores — e piores — intenções.
Acompanhei a donzela até em casa e propus-lhe namoro, explicitamente (meninos, naquele tempo as coisas eram diferentes...). A donzela pediu-me para pensar (devo esclarecer que — sob alguns aspectos — eu não tinha a melhor das reputações na praia onde nos conhecemos, daí sua justificada dúvida). E decidimos nos encontrar no final da tarde no Fluminense, clube do coração e sede social dos jovens laranjeirenses, muitos dos quais repulsivos quinta-colunas torcedores do Flamengo.
Mientras tanto, eu, morando em Vila Isabel e sem carro, não estava muito disposto ao "iire e biire" do ônibus 422. Assim, descobri no largo do Machado um filme de Marco Viccario e passei prazerosamente as horas que faltavam para a grande decisão. É, aliás, curioso acrescentar, que eu estava de bermuda e, naquela época, não deixavam as pessoas entrar de bermuda nos melhores cinemas. Essa barreira eu resolvi tranqüilamente com um I beg your pardon para o porteiro do cinema, na hora em que ele quis me barrar. Naquela época, como também hoje, falou inglês, batata, como diria o velho Nélson. Eu, a propósito, usei muito tal tática para ver os filmes "proibidos para menores de 18 anos".
Bom, para resumir, a donzela é hoje a mãe dos meus filhos e avó do meu neto. Óbvio é que o filme, Os sete homens de ouro, bem gostoso de ver, teve uma significação pessoal importante para mim. Assim, quando mais tarde pude me tornar um colecionador voraz de filmes, é claro que esse foi um dos que procurei com mais afinco. Mas nada de encontrá-lo. Nem aqui, nem na Itália, nos EUA, lugar nenhum.
Durante o Festival do Rio, comentei de passagem o assunto com Gillo. E acabei esquecendo e desistindo de ter uma cópia do filme.
Um ano depois, recebo uma carta do Gillo. Carta de próprio punho, pedindo mil desculpas pelo fato de ele ter custado tanto a perceber qual era o caminho para conseguir a fita: pedir ao próprio diretor, Marco Viccario. E assim ele o fez e portanto ali estava ele mandando o filme que eu tanto queria.
Claro que fiquei muito comovido com tal gesto. Mas foi mais do que isso. Foi um gesto de delicadeza num mundo cada vez menos preocupado com a delicadeza. Uma redenção de crença.
Meus amigos, a preservação do espaço para a delicadeza é essencial. Sem esse espaço, caminharemos mais e mais para nos tornarmos no mínimo simiescos. E medíocres, embrutecidos, "práticos", pragmáticos, pobres de alma. Ninguém se importando com ninguém, cotovelos abertos para afastar o tão distante próximo.
Essa, aliás, é a grande opção que a humanidade tem que fazer. Somos muito semelhantes aos animais na luta pela "sobrevivência". Em alguns aspectos, somos até piores. Apenas, os objetivos são outros, pretensamente mais sofisticados. Se a isto se resumir nossas vidas, estamos condenados.
No seu gesto, o veterano diretor tocou meu coração e me deu um importante exemplo.
Obrigado de novo, Gillo, pela lembrança, pela coragem e pela delicadeza...
Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.
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