Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

O velho e a urna

Lembrei hoje, a lembrança veio devagarinho, aos pedaços, se apossando de mim como uma febre. Lembrei até às lágrimas, nesses meus olhos que úmidos tanto se gostam de quedar.

Lembrei. As ruas cheias, os muitos passantes, o povão, o feio e lindo povão do lugar em que nasci e vivo, meu País, dizem, minha Pátria, grito até a rouquidão. Povão das ruas, em cada um adivinhei os olhos brilhantes, a emoção contida, o orgulho de poder hoje o poder durante tanto tempo negado.

Lembrei. Anos atrás. Doze anos? O velho inquieto, santa inquietude dos inconformados. O velho de olhos fundos, mal andando, pior ouvindo, três enfartes no lombo, anos intensos pesando então. O velho de olhos fundos, melhor terno já vestido, gravata, o mais bem arrumado que podia num tempo em que podia pouco.

— "Eu sei que não sou obrigado. Eu sei muito bem, garoto. E é aí que você não entende nada..."

Lembrei. Ele tinha telefonado, pedindo pra eu "passar por lá", no dia 15. Passei. Ele pronto, título de eleitor à mão, melhor caneta, do terno já falei, de pé a minha espera, vamos logo, ansioso qual amante ao encontro da amada, vamos logo...

Por que eu?

Porque a gente se amava e respeitava, à nossa maneira. Acho mesmo que eu era o único dos quatro que o entendia lá no fundo, entendi mesmo assim tarde, talvez não de todo.

Vamos logo, falava ele, impaciente. Você não precisa ir, falei, você não é mais obrigado, faz tempo que não é mais obrigado, eu tinha dito.

— "... e é aí que você não entende nada! Nada! Eu sei! Obrigado não! Eu tenho o direito!"

Mas...

— "... e eu vou usar esse direito até a morte. Mesmo!"

Lembrei hoje, vi pela primeira vez tal felicidade coletiva, uma aurora radiante de gente com rumo, com opção, vontade, primavera linda depois de inverno rude, sorrisos de luz após a treva, e nem sei se tanto havia, penso tanto vi quanto tanto quis ver.

Fomos, andando, ele e eu. Caminhada lenta, difícil, metros eram milhas, buracos parecendo imensos, caminhada lenta, difícil. Ele falando, voz trêmula. Falando de 1918, 1922, 1924, 1930, 1932, crescendo enquanto falava dos companheiros, das lutas, do medo e do amor, da esperança e da dor.

Chegamos, achamos o local. Dispensado da fila, pelo secretário e pela unanimidade dos presentes, não aceitou a deferência, vou na minha vez, espero, clamou.

Sentou, a dificuldade em assinar o nome, mãos trêmulas, de velhice e de emoção, o presidente da mesa disse: sabe, o senhor não precisa...

— "Diabos, eu peguei em armas pra poder, pra vocês poderem, eu preciso sim senhor...!"

A voz não era mais trêmula, andou sozinho até a cabine, aqui fico sozinho, disse ele, votou sozinho, demorado, cuidadoso, doloroso. Caminhou de volta, colocou a cédula na urna como quem penetra a virgem sonhada, num amor muito bem feito, carinhoso, vagaroso...

— "Orgulho-me de conhecer gente como o senhor", disse o presidente da mesa e entregou-lhe o título. Lembro-me como se fosse hoje. Ele cumprimentou a todos da mesa, um por um, trôpego, desejou-lhes felicidades "...na sua nobre missão" e disse-me, imperioso: vamos!

E aí foi demais... E a mesa e os votantes, as filas e passantes, todos, as pessoas, elas... aplaudiram! A emoção foi arrebatadora. E eu chorei, orgulhoso, empolgado, brasileiro, cidadão, filho...

Lembrei-me hoje de ti, pai, lembrei-me daquele dia. Sei que sempre soubeste que não cultivo saudades do que foi; mas hoje chorei novamente lembrando-me de ti, velho arrebitado e arrebatado, revolucionário e autêntico, arrojado e orgulhoso, danado de teimoso. Chorei, meu pai, chorei de orgulho...

Quem sabe nós, cada um de nós, nós todos, hoje, possamos transmitir a nossos filhos, à nova geração de brasileiros, inconformados também, a mesma atitude, o mesmo exemplo. Vamos votar, consciente e refletidamente, não porque nos obrigam. Vamos votar porque é preciso, porque o Brasil precisa. Porque há alguns anos, lá atrás, muitos de nós conquistaram ou reconquistaram esse direito.

 
Artigo originalmente publicado em O Globo, 02/10/2002

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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