Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

Um pequeno brasileiro chamado Antônio

Tive de início a reação de sempre. Quando ele chegou, pedindo para tomar conta do carro, respondi com aquela anuência mal-humorada da qual a gente não escapa numa situação dessas.

Era um dia relevante para mim, eu ia tentar pela primeira vez correr após a operação no joelho. Um parêntesis, depois que você tem um problema no LCA (para os leigos, Ligamento Cruzado Anterior), você descobre que o mundo inteiro já teve problemas com o LCA. De lá para cá, conheci mais de 10 pessoas que tiveram problemas com seu LCA, fora as da clínica de fisioterapia, é claro. Às vezes penso que é uma coisa tão comum como gripe, com algumas diferenças: demora muito mais para tratar e é muito mais caro resolver. Em compensação, muito mais fashion, particularmente se você romper o seu LCA esquiando, o que, infelizmente, não foi o meu caso.

Bom, deixemos os LCA para lá e voltemos àquele dia na USP. Como eu dizia, não deve ter sido muito cordial a cara que eu fiz para o garotinho, aliás de cara muito mais simpática do que a minha. Apesar disso, quando eu voltei, lá estava ele junto ao meu carro, que a essa altura era o único das redondezas, precisando mesmo que alguém tomasse conta. Não que eu achasse que ele fosse fazer algo se alguém quisesse levar o carro, considerando seu porte minúsculo. Ele não só estava lá como logo perguntou:

— "Tio, quer água?" A propósito, todos sabemos que é um dos sintomas da idade mais avançada é sermos chamados de tio. O próximo passo é vovô, o que, aliás, eu já sou, com muito orgulho. E é mais grave quando as meninas bonitas te chamam de tio, já dizia o anúncio do refrigerante.

— "Onde é que você vai arranjar água, menino?", perguntei com medo de que viesse água de um dos "límpidos" lagos da USP numa garrafa plástica qualquer.

— "Já está aqui embaixo do carro, dois copinhos. Achei que o senhor ia estar com sede no fim da corrida e pedi a um personal [sic] amigo meu que tem uma barraca aqui perto. O senhor não parece estar em muito boa forma..."

A água e a sinceridade me desarmaram. E comecei a puxar conversa. Descobri que se chamava Antônio, de Fortaleza e com 11 anos, filho mais velho de quatro irmãos. Todos trabalhando, disse, com evidente orgulho na voz.

A conversa prosseguiu e não sei porque chegou ao assunto casamento.

— "Vou casar não", afirmou, absolutamente categórico.

— "Por que não, você quer aproveitar muito a vida, ter muitas namoradas, etc., etc.", perguntei, usando sem perceber o jargão machista que minha geração usava muito.

— "Nada disso", retrucou convicto. "Tenho visto muitas separações, pra que casar se a gente vai separar depois?"

Devo dizer que não tive argumentos em contrário suficientemente fortes. E perguntei se ele estudava, disse que sim e se era bom aluno, ao que sacudiu a cabeça fortemente. E disse também que fazia capoeira com um professor da USP. E aí encontramos o nosso ponto de afeto comum. Disse-lhe que tinha feito capoeira há muitos e muitos anos atrás e que gostava muito. Ao que Antônio desfilou seu repertório de golpes com enorme entusiasmo. Quando lhe disse que meu professor tinha sido aluno de Mestre Pastinha, o menino me olhou com ar de veneração absoluta, como se eu lhe dissesse que havia conhecido Jesus Cristo.

E Antônio falou dos filmes que viu no cinema da USP, o único que ele conhece. Aliás, de passagem, um dos problemas do cinema brasileiro é que seu público mais potencial não vai ao cinema porque não pode. Insisto que salas de cinema brasileiro subsidiadas pelo poder público são, portanto, uma necessidade. E Antônio sabia também quem são os candidatos a Presidente e tem sua opinião própria a respeito, que não vou contar. E Antônio cantou e encantou e mais disse e muito falou.

Eu tinha que ir embora e perguntei quanto devia, inclusive pela água.

— "Nada não, o senhor agora é meu amigo, não precisa pagar nada..."

Um pequeno brasileiro chamado Antônio. Um autêntico mestre do bom marketing.

Em vez do nada dei dez reais, com enorme prazer, diga-se de passagem. E Antônio se foi, feliz da vida e fez meu dia muito melhor. E com mais esperança. Porque há muitos e muitos Antônios por esse Brasil afora. E um dia todos esses Antônios vão desabrochar, e vão ser e existir e sorrir e construir um Brasil que eu espero que nossos pequenos de hoje ainda possam ver...

 
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 19/08/2002

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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