Luiz Antônio Viana

Textos e reflexões sobre sociedade, cultura e arte

Textos

Uma maratona para a maratona

Foi daquelas coincidências que parecem conspiração.

A Maratona de Revezamento do Pão de Açúcar, que criei há muitos anos e que sempre corri, ano passado foi marcada com muita antecedência para um domingo de setembro às 9:00 horas da manhã, em São Paulo.

De outro lado, a formatura do meu afilhado foi marcada, com um ano de antecedência, para um sábado às 18 horas em Florianópolis. É claro que, como manda a Lei de Murphy, justo no sábado anterior ao domingo da Maratona. Eu, além disso, sendo patrono da turma.

Para piorar, eu tinha convencido minha namorada corredora a abandonar a equipe do grupo em que treina para correr na minha equipe da BR e me passar a faixa. Romântico, não é? É. Mas se por um acaso eu desistisse da corrida por causa da formatura, o Kracatoa entraria em erupção, como entrariam em erupção o Etna e o Vesúvio, o mundo enfim entraria em erupção, todo ao mesmo tempo. Então, ou era acomodar as coisas ou acomodar as coisas.

Vamos ver, calma lá. Dezenove mais vinte e dois mais vinte mais etc., etc., ótimo, a soma dos tempos previstos de cada corredor da minha equipe mostrava que não antes de onze e meia eu teria que receber a faixa, uma vez que seria o último a correr.

Vejamos os vôos. Bingo! Um direto de Florianópolis para São Paulo saindo às, Deus, sete horas da madrugada. Eu, inimigo confesso, assumido e figadal de acordar cedo, vislumbrei um telefone tocando às cinco horas num quarto de hotel, bom dia (dia?!) senhor, sua chamada de despertar.

Que se haverá de fazer? Já que houve esta conspiração cronológica e calendarial, importante é enfrentá-la com criatividade, energia e vontade.

Vôo saindo às 7:00 h, chegada às 08:15 em São Paulo, ir até em casa, trocar de roupa, com jeito chegava até antes da largada. E com folga para as 11:30.

E planejei e reservei e voei para Florianópolis. Curti um agradável almoço com o irmão, a cunhada, os sobrinhos e um amigo. Comportei-me heroicamente nas quase três horas de formatura, patrono que era. Discursos, entrega dos diplomas, mesa apertada, luzes no rosto. Curti o jantar depois, gostoso convívio com os amigos e a família do irmão.

Pro baile não fui. Não dava, só se fosse direto do baile pro avião, comportamento pouco recomendável para quem iria correr 5 km em seguida.

Dormi mesmo assim mais de meia noite. Acordei às cinco, chispei para o aeroporto, cheguei bem e, adivinhem, uma boa notícia, rara nos nossos dias: o avião estava no horário.

Feliz de posse do meu cartão de embarque de um vôo que iria sair no horário, relaxei. Mais feliz ainda fiquei quando o vôo foi chamado na hora e poucos minutos antes das sete, a porta foi fechada. Bom demais para ser verdade, não é? Qualquer voador de aviões mais veterano sabe que sim.

E a odisséia começou.

— "Senhoras e senhores, devido a problemas no nosso sistema, as checagens de vôo estão sendo feitas manualmente e isso atrasará um pouco nossa decolagem".

Não entendi bem que sistema e que checagens, mas, vá lá. Só que o "um pouco de atraso" foram 40 minutos. Às 8:40, nosso pássaro de aço se moveu. Até quase a cabeceira da pista. E ali parou. Por mais 20 minutos (percebam que era Florianópolis e não Congonhas, onde você fica hoje em dia mais tempo para decolar e pousar do que o tempo de vôo Rio/São Paulo).

Após os vinte minutos antes referidos, a comunicação:

— "Senhores passageiros, temos um problema em uma das luzes indicadoras que precisamos checar. Por isso, retornaremos ao pátio".

E retornaram. E os experts em luzes-que-indicam-problema começaram a examinar o problema que fez com que as luzes-que-indicam-problema acendessem.

E devia ser um baita de um problema porque depois de 1 hora com os passageiros dentro do avião parado, sem pão e sem água, eles anunciaram:

— "Senhores passageiros, vamos providenciar o desembarque enquanto a nossa equipe de terra procura encontrar o problema". Ou algo assim.

Bem, a esta altura a folga em tempo já tinha ido para o espaço sem que o avião tivesse ido idem. Eram 9 horas e não havia perspectivas.

Saltados e desembarcados todos (porque dizemos saltar do avião?) corri para a gerência da companhia aérea no aeroporto e galoneei um vôo para São Paulo que faria escala em Joinville.

Não era bem o avião dos meus sonhos o que me levaria finalmente à paulicéia, com uma parada no simpático enclave alemão de Santa Catarina. Pequeno e apertado, mas voava, pois às 9:20 decolou.

E eu fazia as contas, melhor dizendo, refazia, para me posicionar sobre o possível horário de chegada. Ainda dava. Vinte minutos até Joinville, vinte no solo, dez horas. Uma hora até São Paulo, onze. Vinte minutos para trocar de roupa, e chegar até o local da corrida. Ainda dava.

Mas a conspiração anti-maratona não havia terminado.

— "Senhores passageiros, recebemos informação de que o Aeroporto de Joinville se encontra (se encontra?) fechado. Portanto, aguardaremos instruções do solo (solo?) para decidirmos sobre o prosseguimento do vôo para São Paulo ou possivelmente, o retorno a Florianópolis".

Demais, não é? Até porque as companhias aéreas parecem não ter critério. Havia 3 passageiros para Joinville e, depois, constatei, 5 de Joinville para São Paulo. E quarenta que queriam ir de Florianópolis para São Paulo. Enfim, depois de mais alguns minutos a decisão, óbvio, foi nenhuma das anteriores. Pousamos em Joinville mesmo.

Para resumir, depois de idas e contramarchas, saía eu pela porta do Aeroporto de Congonhas às 11:25. Danou-se, pensei.

Liguei para o Márcio, amigo querido e organizador da corrida.

— "F..., né!" falei. E ele, "...não, não. Tua faixa vai ser passada, eu calculo, às 11:50. Tenta, cara!, estimulou.

Meu ótimo piloto, quero dizer, motorista, cometeu todos os crimes do trânsito com total insensatez no caminho de casa. Além de tudo, enquanto eu trocava de roupa, uma imperiosa vontade de ir ao Walter Clóvis (WC, para os íntimos) me assaltou. Cumpri o inadiável dever cívico e despenquei pelo elevador com o tênis na mão. O tênis, eu disse.

Liguei do carro para Márcio. E como eu chego no posto de troca? As ruas estão fechadas! O grande Márcio achou a solução:

— "...vou mandar uma moto da organização te buscar na barreira".

Cheguei na barreira antes da moto, graças às conhecidas habilidades sennistas do mestre Doriva. Segundos depois, chegou a moto e minutos depois, estava eu no ponto de troca.

— "Ela chegou?", perguntei com medo da resposta.

Não, tá chegando. E estava. Três, três, eu disse, minutos depois, eu recebia a faixa, um sorriso e um beijo e saía para a mais disputada corrida da minha vida. Só que a disputa foi outra.

Mal comecei a correr, me lembrei que eu não tinha comido café da manhã no hotel e que a deliciosa companhia aérea não tinha servido nada em nenhum dos vôos, o que não voou ou o que voou. E me senti fraco, embora feliz. E me lembrei do lema dos maratonistas, pain is temporary, pride is forever. A dor passa, o orgulho é pra sempre.

E me senti feliz e orgulhoso. E pensei comigo mesmo, vai gostar de maratona na... Bom, vocês sabem onde.

 
Artigo originalmente publicado em Contra-Relógio (Ano 10, nº 106), 00/07/2002

Conteúdo

Artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo, no Valor Econômico, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e Jormal do Commercio, e nas revistas Exame e Bravo, dentre outras.

 

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